Maranhão

Durante muito tempo, a produção musical do Maranhão, do ponto de vista fonográfico, orientou-se por modelos estabelecidos pela indústria fonográfica, sem que se pudesse falar em uma identidade própria, apesar da riqueza e diversidade das manifestações da cultura popular do estado. Artistas “exilados”, como João do Vale e, depois, Alcione, não eram tidos como “maranhenses”, do ponto de vista da identidade, pois o sucesso os alçava à condição de artistas “brasileiros”.

Por isso “Bandeira de aço” (1978), disco do cantor e percussionista Papete, gravado pelo publicitário Marcus Pereira para a gravadora que levava seu nome, é tido como um marco, um divisor de águas na produção musical do estado: era a primeira vez que ritmos como o bumba meu boi, o tambor de crioula e o tambor de mina eram assimilados pelas classes que podiam ter aparelhos de som em casa e comprar discos – com a expressão “compositores do Maranhão” abaixo do nome do intérprete na capa, o disco registrou a obra de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe, da geração que anos antes, em 1972, fundou o Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão (Laborarte), onde se iniciaram essas experiências e pesquisas em torno e em busca de uma música genuinamente maranhense.

Já havia, é claro, registros de grupos da cultura popular, notadamente os bois de Pindaré (sotaque da baixada, cujo primeiro disco data de 1972), e de Lauro (zabumba, de 1973), e mesmo Chico Maranhão, de uma geração anterior à de Papete e dos compositores que este registrou, também já havia sido gravado anteriormente pelo próprio Marcus Pereira, desde quando ainda era estudante de arquitetura na FAU/USP.

A importância de “Bandeira de aço” e “Lances de agora”, o disco que Chico Maranhão gravou no mesmo ano, pela mesma Marcus Pereira, foi provar que era possível fazer música com um sotaque maranhense, o que inspirou toda uma geração posterior a compor, produzir e registrar suas obras, a despeito da malfadada sigla MPM, cujo significado música popular maranhense procurava delimitar uma linguagem (uma espécie de subconjunto dentro da mais ou menos recente sigla MPB, cunhada a partir dos festivais de música popular transmitidos pela televisão) e uma geografia (o território maranhense) muito particulares.

Ainda não havia internet, a circulação era restrita e o tão sonhado sucesso ainda residia em mudar de ares: muitos buscaram o Rio de Janeiro e São Paulo, onde afinal estavam as grandes emissoras de rádio e televisão e os mais bem equipados estúdios. Se avançarmos a fita em alguns anos, nomes como o percussionista Erivaldo Gomes e os compositores Chico Saldanha e Tião Carvalho se mudaram para São Paulo; o primeiro arrumou um emprego fixo no global Som Brasil, então apresentado por Lima Duarte; o segundo, em paralelo à carreira de advogado, gravou seu disco de estreia e o terceiro, até hoje radicado por lá, ganhou o título de cidadão paulistano da Câmara Municipal de São Paulo pelos relevantes serviços prestados à cultura brasileira, sobretudo à preservação e difusão da cultura popular do Maranhão, com seus trabalhos à frente do Grupo Cupuaçu, instituição que mantém no Morro do Querosene, no Butantã.

Um pouco mais adiante, artistas que conviveram com os nomes anteriormente citados na cena noturna dos barzinhos da capital maranhense, Rita Benneditto e Zeca Baleiro também se mudaram para São Paulo, onde acabariam por fixar residência e se tornando dois dos mais conhecidos nomes maranhenses no universo da MPB, sigla que abrange um leque bastante amplo de gêneros e referências. Na contramão, por exemplo, o duo Criolina, formado por Alê Muniz e Luciana Simões, após experiências em São Paulo, decidiu fixar residência em São Luís, a partir de onde gere sua própria carreira e produz eventos como o Festival BR-135, um dos maiores do Brasil, realizado ininterruptamente desde 2012.

A cena musical atual do Maranhão é uma das mais ricas e desconhecidas do Brasil. Ritmos como tambor de crioula, bumba meu boi, em seus mais diversos sotaques, cacuriá, entre outros, além dos mestres da cultura popular, deixaram e deixam seu legado afropindorâmico, amazônico, negro e indígena. Povos tradicionais construíram nossa identidade musical, juntamente com a proximidade da baixada maranhense e da ilha de São Luís com o Caribe, a construção do gosto peculiar pelos ritmos merengue, reggae, salsa e afins.

Dentro deste olhar e acontecimentos surgem os seresteiros e a cena brega, dando destaque a Adelino Nascimento e Raimundo Soldado. O escambo de vinis vindos de barcos ou por via terrestre trazendo esses ritmos, abasteceu essa cena que só cresceu com a re/criação dos sound systems ao estilo jamaicano nas periferias, com grandes aparelhagens de som espalhadas pela cidade e pelo interior do estado.

A banda Tribo de Jah e o cantor e compositor Santacruz se impõem no cenário como alguns dos maiores nomes nos palcos do Brasil. Esse recorte influencia muito do que está posto hoje na produção local. O som periférico se fortalece destacando novos artistas que se reúnem em batalhas de rap e guetos, onde se misturam o reggae, o som LGBTQIA+, o brega, o samba. Podemos citar artistas como Criola Beat, Pantera Bl4ck, Biodz, Gugs, Regiane Araújo, Dicy, Paulão, Célia Sampaio, Núbia, Fuega, Emme, e nomes que fizeram história ao longo do tempo, como Nonato e Seu Conjunto, que embalou as noites do Maranhão nos anos 1970 e 80, mas que ainda hoje surpreende com seu balanço, a exemplo das noites de grandes metrópoles como Nova York, em mãos de DJs conectados com a música brasileira.

Acreditamos nas ferramentas que temos nas mãos, na capacidade de reverberar as nossas vozes. O Maranhão está pronto para se conectar com produtores e artistas de todo o mundo, fazer uma bonita troca, fazer parte da dança, criar curiosidade para os nossos sotaques, para a musicalidade desta parte do Brasil, que tem um pé no Nordeste e o outro na Amazônia, banhado por um extenso litoral, que pelas ondas do mar recebeu a África que aqui permanece e pelas ondas de rádio que nos fizeram ouvir o Caribe e a Jamaica, que tocam nas radiolas e que inspiram novos beats criados na periferia, capazes de dialogar com todas essas influências recebidas, reinventando-as.

O advento da internet, de novas tecnologias e das plataformas digitais barateou e facilitou sobremaneira a produção e difusão musical, permitindo inclusive o lançamento de EPs, com menos faixas que um álbum convencional, além de singles, ou seja, um artista pode lançar uma faixa isoladamente, se assim lhe convier ou o momento lhe exigir. A inspiração e a criatividade dos artistas se adequa ao tempo, importando mais a verdade do conteúdo que o suporte em si.

Luciana Simões
Zema Ribeiro

Luciana Simões

Artista na banda Criolina/MA e ativista cultural. Criadora e gestora do festival BR135, que acontece em São Luís do Maranhão há 10 anos, ocupando com arte o centro histórico de São Luis. Co-criadora de ferramentas de pressão política como Observatório da Cultura do Maranhão e da Liga da Cultura, atuante também no Maranhão. Curadora do Prêmio Natura 2018 e curadoria do Porto Musical 2020. Player do Festival TUM 2021(Florianopolis), FIMs 2021 (Curitiba). Curadora do festival Noites Brasileiras 2022 (Ceará). Player dos festivais COmA 2022 e conferência COmA (BSB), Serasgum 2022 (PA), Sonido 2022 (PA), Festival Favela sounds 2022 (BSB), Favela Talks 2022. Em 10 anos, o Festival BR 135, que tem como objetivo a formação de plateia, a promoção de intercâmbio cultural e a inclusão da música produzida no Maranhão no mapa cultural do Brasil, começando numa lona de circo com 200 pessoas, já realizou 10 edições, levando ao palco em média 700 artistas, por edição. Em 2019, alcançou público de 90 mil pessoas em 03 dias. Co-Criadora dos seguintes eventos e projetos: Festival BR 135; Festival BR instrumental; Conecta Música; Selo BR135. 

Zema Ribeiro

Zema Ribeiro (São Luís/MA, 1981) é jornalista. Coordenador de produção da Rádio Timbira AM, produz e apresenta, aos sábados, das 13h às 15h, com Gisa Franco, o Balaio Cultural. Escreve regularmente no Farofafá (farofafa.com.br). Autor de “Chorografia do Maranhão” (Edufma/Pitomba!, 2018), com Ricarte Almeida Santos e Rivânio Almeida Santos, e “Penúltima página: Cultura no Vias de Fato” (Passagens, 2019).